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sexta-feira, 29 de agosto de 2014

A razão não está em oposição à emoção

 

É comum alguém dizer: seja racional. Outras vezes, referindo a uma situação determinada, diz-se: use a razão e não a emoção. Quando alguém está apaixonado, diz que deveria ter seguido a razão.  São expressões bem comuns, mas nada mais equivocado para ambas as situações citadas. Nossa vida e nossas ações não cabem num manual de recomendações práticas, como se tudo que precisássemos, em determinada momento, dependendo de cada situação, fosse só sacar o manual com as indicações de uso correto, ora fazendo uso da razão, ora das emoções, tudo numa estreita observação do script, para sermos bem sucedidos. Mas as coisas não funcionam bem assim.  

Ao longo dos séculos, a razão tem sido proclamada como um dos principais meios de chegar a alguma certeza de conhecimento. Mas foi com o advento do desenvolvimento cientifico [só para nos situarmos melhor para essa pequena reflexão], que a razão deixa de ser razão iluminada, entrando numa faze de domínio, aliada da ciência, e passa a ser chamada de razão instrumental. Mas nem sempre foi assim.

Como a razão proporcionou ao homem respostas diretas e axiomáticas para muitas questões que o intrigavam e preocupavam, antigos filósofos (e muitos de períodos relativamente mais recentes) a equipararam à inteligência divina. Seu poder, se nos servirmos do mito grego para elucidar essa questão, é como o fogo que Prometeu trouxe à terra e o presenteou aos homens.

Os filósofos antigos entendiam a razão como o mais elevado dos processos mentais comuns do homem. A razão luta continuamente para unificar a experiência, uma vez que procura converter o desconhecido em conhecido. É ela que procura uma possível causa por trás dos efeitos. A mente racional é a verdadeira mente pensante. Raciocinar é analisar deliberadamente idéias e depois combiná-las numa continuidade útil e compreensível.

Entretanto, nem todo raciocínio é necessariamente pragmático, ou seja, está ligado aos aspectos práticos do dia-a-dia. O ser humano não é só razão, sabemos disso; ele traz uma outra dimensão em seu próprio interior, formando os dois mundos da sua própria unidade, a saber, o consciente e o inconsciente.  E isso, quando não sabemos mais, por conta do corte operado pela razão instrumental dos últimos séculos -, fazer uso dos dois mundos que trazemos em nossa psique [consciente/inconsciente], tendemos a ficarmos  desorientados e sem conseguir organizar nosso próprio mundo.

Mas a razão provê de fato uma orientação pessoal para a nossa vida, porque nos proporciona uma compreensão que diminui a confusão. As respostas ou soluções de nossa razão pessoal podem não ser infalíveis, mas nos proporcionam realmente pelo menos uma justificativa temporária para os atos que dela decorrem. Os atos provocados pela razão constituem um impulso íntimo, isto é, sabemos que estamos sendo impelidos pela força do nosso próprio pensamento.

Aristóteles disse que a razão ativa é um movente não-movido, ou seja, uma espécie de inteligência cósmica na qual tem existência toda forma, toda realidade. Ela move o homem e todas as coisas de modo que se manifestem, mas ela própria é não-movida. Segundo Aristóteles, essa razão ativa está infusa no ser humano e guarda uma relação divina.

Plotino, o filósofo neoplatônico, declarou que a razão contemplativa é a alma. A essência da alma, disse ele, busca a verdade contemplativa que é a prerrogativa da Razão Divina. A razão humana comum, afirmou, é o que mais se aproxima da razão contemplativa que constitui a alma. Nisso, então, podemos perceber a doutrina de que a alma e a razão contemplativa constituem um portal para a inteligência divina, em que se acredita que repousa a verdade em seu estado absoluto.

Num período relativamente mais moderno, Immanuel Kant declarou que nosso mundo apresenta três aspectos: 1) um sujeito racional e perceptivo, como o homem; 2) um mundo de fenômenos que esse ser racional percebe; 3) os objetos de pensamento em geral. Segundo Kant, a razão tenta introduzir unidade absoluta em cada um desses fatores. Em outras palavras, Kant afirmou que a razão busca a alma como o campo unificador da atividade da mente. Podemos deduzir disso que Kant sugeriu que a razão é o instrumento usado pela alma ao revelar ao homem o vislumbre que ele tem da realidade.

John Locke, filósofo inglês, em Ensaio sobre a Compreensão Humana, perguntou por que o ser humano raciocina tão mal. E ele mesmo deu três respostas para essa pergunta. Primeira: a maioria das pessoas nunca raciocina. Elas se deixam levar pelo pensamento de outras e nutrem opiniões por mera crendice e não por investigação pessoal. A autoridade alheia em que se baseia a sua crendice gera certeza, mas é perigosa porque leva a aceitação muitas vezes intolerante, fechada e dogmática.

Assim sendo, não se trata da afirmação de que a razão pode dominar a emoção, como diria muito bem Espinosa. Elas não estão em oposição. Pelo contrario. Somos razão e emoção. 

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