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quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Adultério, depressão e cinzas

Locke é um filme todo ele rodado dentre de um carro confortável e equipado com a alta tecnologia moderna. Sob as luzes de uma cidade grande, seguindo por uma via altamente movimentada, algo muito antigo e livre reclama sua presença numa via em curso. Milhões de anos se passaram, até chegarmos o advento da civilização, quando passamos a viver e a nos adaptarmos a uma forma de vida muito diferente da que já tivemos bem antes. Julgamos ser este o melhor arranjo que aderimos, mas logo percebe-se que, excetuado o conforto das transformações técnico/cientificas e tecnológicas, que trouxeram mudanças e alterações para o nosso bem-estar, esse modelo de sociedade formatou determinadas regras e costumes, que já não podemos nos afastar mais delas – embora lutemos contra os impulsos da energia atrativa que nos empurra para o lastro desinibido de sua presença. Se não podemos conviver melhor com esses impulsos livres, tanto pior: a negação desses arroubos tem levado ao assombroso tipo de vida moderna medida nos cálculos exorbitantes das suas conseqüências, a saber: depressão, monotonia, medo e o fluxo regular e mortal da rotinização.

O filme mostra bem os dilemas do nosso tempo. Segundo estimativas, há um número muito grande de pessoas em todo o mundo em estado de depressão, causada por frustração no relacionamento. Quando determinados padrões de vida começam a interferir, quando as relações já não têm como horizonte um profundo desejo de compartilhar experiências duradouras e profundas,  ancoradas  num sentimento acima das suspeitas, ciúmes, medo e dúvidas; alheia à severidade normativa e suas respectivas condutas esperadas, é muito provável que se caia nos interstícios fugidios dessa cotidianidade. O ritmo da vida se apresenta fixo, rotinizado, rigoroso, tão rigoroso quanto Locke é consigo próprio. Isso denuncia aquilo que fixa regularidades da vida social;  também aquilo que a perturba.

Esse excelente filme, durante quase 85 minutos, faz cair as cinzas desses dias e não deixará nada de pé, mesmo com toda a solidez dos concretos exigidos para erigir os imponentes arranha-céus que encobrem a monotonia Moderna.

Tom Hardy, excelente ator, interpreta o personagem Ivan Locke. Empreiteiro admirado e respeitado, bem resolvido financeiramente, casado há mais de quinze anos, pai de dois filhos, parece nada mais faltar, e nada parece fora de lugar nessa família, tão bem fixada pelas regularidades da vida social, que circunscreve tão bem à normatividade predominante que nos cerca. Mas as coisas não têm a fixidez monolítica de um “bloco” que Locke conhece tão bem. E um dia desses, porém, Locke se vê premido por “consertar” um erro que ele julga nunca deveria ter acontecido. Com a consciência pesando, depois de um dia no seu rentável trabalho, decide ir de encontro ao que vem lhe atormentando há meses. Numa obra anterior, Locke se envolveu momentaneamente com sua secretária e o encontro inesperado rendeu uma gravidez indesejada. Segue-se daí que, com esse adultério, Locke já não tem mais a paz e a tranquilidade que reinava antes. Um sentimento de culpa o persegue e faz com que o nosso protagonista decida dirigir da sua cidade até Londres, pois recebeu a notícia de que naquela noite a mulher dará a luz. Locke arrisca colocar em xeque a sua estabilidade, sua reputação na empresa e no circulo de amizade em prol de que a criança tenha alguém para chamar de pai.

Pai, para Locke, é um misto forte da figura paterna projetada das normas que ela engendra, desenvolvido em nossa relação com a autoridade do pai, as instituições, a igreja, etc., levando ao reconhecimento da própria individualidade. E dela formamos, conforme o grau de introjeção, imagens de resistência ou aceitação da submissão à gramática da norma.

Enquanto segue o trajeto até o hospital, Locke precisa contar a verdade para sua esposa, lutar para não ser demitido e encarar da melhor maneira possível as consequências de um ato infiel do passado.

Enquanto segue o trajeto, Locke se vê numa procura de redenção por um ato que o levará a sentir-se o homem mais fraco e culpado do mundo. Entre diálogos constantes ao telefone, desde os funcionários da empresa, passando pela própria secretaria grávida, pela equipe do hospital, filhos e a própria esposa, Locke luta com suas convicções, como se tivesse que vencer os dragões do tempo originário do ato da consumação até que estejam verdadeiramente mortos. Seu sentimento de culpa aumenta e ele, quando não está ao telefone discutindo e dando ordens aos seus funcionários [e estes entram na trama e fazem a roda de Locke girar como se fosse uma ameaça da roda de Ixion], Locke desata a falar consigo mesmo. Mas esse monólogo não chega a ser uma reflexão de si mesmo, é muito mais para acusar-se, para dizer a ele mesmo que é um fraco, para se culpar. "Para Nietzsche, a libertação depende da reversão do sentimento de culpa" (Marcuse). Entretanto, "o problema em última instância não é a culpa, mas a incapacidade de viver. A ilusão da culpa é necessária para um animal que não pode gozar a vida, a fim de organizar a vida do desprazer", diz Norma Brown. Em nenhum momento ele duvida das suas convicções, não reflete sobre o peso que coloca sobre sua própria cabeça, que se abaterá por consequência sobre todos que o cercam. Ele não faz perguntas, e não admite que seus subordinados se dirijam a ele como se suas afirmações se parecessem como se fossem perguntas. Não, não há contingência nessa sua normatividade. Suas convicções aparecem para ele como indícios que asseguram a realidade de si e do mundo.

Entretanto, essa ilusão logo vai se smilinguido e Locke, por fim, recebe um telefone da esposa pedindo que não retorne mais ao lar. Já não tem mais lar. Silêncio completo. As únicas palavras que ficam são as da sua esposa, que  ecoam na sua cabeça, e a voz do seu filho que havia ligado para contar emocionado sobre o jogo do seu time. As lágrimas lhe escorrem pelo rosto. Locke está atônito, em completo silêncio, enquanto guia o carro pela via movimentada. As luzes da cidade e os faróis não podem lançar uma única nesga de luz em sua terrível impotência e solidão. Locke, que não nutre sentimentos, parece conduzir-se a si mesmo ao inferno. Sua dureza consigo próprio, seu sentimento de culpa e de fraqueza faz pensar que precisa ser redimido. E leva isso às ultimas consequências. A nenhum homem é exigido isso. Entretanto, erige para si um calvário, quando as flores e as águas cristalinas dessa fonte pedem apenas olhos para ver e sentir a água na garganta da sede de amor que rega e faz florir na alma. Tudo estava tão próximo, tudo estava ao lado. Locke não vê.

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