Locke é um filme todo ele
rodado dentre de um carro confortável e equipado com a alta tecnologia moderna.
Sob as luzes de uma cidade grande, seguindo por uma via altamente movimentada,
algo muito antigo e livre reclama sua presença numa via em curso. Milhões de
anos se passaram, até chegarmos o advento da civilização, quando passamos a viver e a
nos adaptarmos a uma forma de vida muito diferente da que já tivemos bem antes.
Julgamos ser este o melhor arranjo que aderimos, mas logo percebe-se que,
excetuado o conforto das transformações técnico/cientificas e tecnológicas, que
trouxeram mudanças e alterações para o nosso bem-estar, esse modelo de
sociedade formatou determinadas regras e costumes, que já não podemos nos
afastar mais delas – embora lutemos contra os impulsos da energia atrativa que
nos empurra para o lastro desinibido de sua presença. Se não podemos conviver
melhor com esses impulsos livres, tanto pior: a negação desses arroubos tem
levado ao assombroso tipo de vida moderna medida nos cálculos exorbitantes das
suas conseqüências, a saber: depressão, monotonia, medo e o fluxo regular e mortal da
rotinização.
O filme mostra bem os
dilemas do nosso tempo. Segundo estimativas, há um número muito grande de
pessoas em todo o mundo em estado de depressão, causada por frustração no relacionamento.
Quando determinados padrões de vida começam a interferir, quando as relações já
não têm como horizonte um profundo desejo de compartilhar experiências
duradouras e profundas, ancoradas num sentimento acima das suspeitas, ciúmes, medo e dúvidas;
alheia à severidade normativa e suas respectivas condutas esperadas, é muito
provável que se caia nos interstícios fugidios dessa cotidianidade. O ritmo da vida
se apresenta fixo, rotinizado, rigoroso, tão rigoroso quanto Locke é consigo
próprio. Isso denuncia aquilo que fixa regularidades da vida social; também aquilo que a perturba.
Esse excelente filme,
durante quase 85 minutos, faz cair as cinzas desses dias e não deixará nada de
pé, mesmo com toda a solidez dos concretos exigidos para erigir os imponentes arranha-céus
que encobrem a monotonia Moderna.
Tom Hardy, excelente ator, interpreta o personagem Ivan Locke. Empreiteiro admirado e respeitado, bem
resolvido financeiramente, casado há mais de quinze anos, pai de dois filhos,
parece nada mais faltar, e nada parece fora de lugar nessa família, tão bem
fixada pelas regularidades da vida social, que circunscreve tão bem à
normatividade predominante que nos cerca. Mas as coisas não têm a fixidez
monolítica de um “bloco” que Locke conhece tão bem. E um dia desses, porém,
Locke se vê premido por “consertar” um erro que ele julga nunca deveria ter
acontecido. Com a consciência pesando, depois de um dia no seu rentável
trabalho, decide ir de encontro ao que vem lhe atormentando há meses. Numa obra
anterior, Locke se envolveu momentaneamente com sua secretária e o encontro
inesperado rendeu uma gravidez indesejada. Segue-se daí que, com esse
adultério, Locke já não tem mais a paz e a tranquilidade que reinava antes. Um
sentimento de culpa o persegue e faz com que o nosso protagonista decida dirigir da sua cidade até Londres, pois recebeu a notícia de que naquela noite
a mulher dará a luz. Locke arrisca colocar em xeque a sua estabilidade, sua reputação na empresa e no circulo de amizade em prol de que a criança tenha
alguém para chamar de pai.
Pai, para Locke, é um misto
forte da figura paterna projetada das normas que ela engendra, desenvolvido em
nossa relação com a autoridade do pai, as instituições, a igreja, etc., levando
ao reconhecimento da própria individualidade. E dela formamos, conforme o grau
de introjeção, imagens de resistência ou aceitação da submissão à gramática da
norma.
Enquanto segue o trajeto até
o hospital, Locke precisa contar a verdade para sua esposa, lutar para não ser
demitido e encarar da melhor maneira possível as consequências de um ato infiel
do passado.
Enquanto segue o trajeto,
Locke se vê numa procura de redenção por um ato que o levará a sentir-se o
homem mais fraco e culpado do mundo. Entre diálogos constantes ao telefone,
desde os funcionários da empresa, passando pela própria secretaria grávida,
pela equipe do hospital, filhos e a própria esposa, Locke luta com suas
convicções, como se tivesse que vencer os dragões do tempo originário do ato da
consumação até que estejam verdadeiramente mortos. Seu sentimento de culpa
aumenta e ele, quando não está ao telefone discutindo e dando ordens aos seus
funcionários [e estes entram na trama e fazem a roda de Locke girar como se
fosse uma ameaça da roda de Ixion], Locke desata a falar consigo mesmo. Mas
esse monólogo não chega a ser uma reflexão de si mesmo, é muito mais para
acusar-se, para dizer a ele mesmo que é um fraco, para se culpar. "Para Nietzsche, a
libertação depende da reversão do sentimento de culpa" (Marcuse). Entretanto, "o
problema em última instância não é a culpa, mas a incapacidade de viver. A
ilusão da culpa é necessária para um animal que não pode gozar a vida, a fim de
organizar a vida do desprazer", diz Norma Brown. Em
nenhum momento ele duvida das suas convicções, não reflete sobre o peso que
coloca sobre sua própria cabeça, que se abaterá por consequência sobre todos que
o cercam. Ele não faz perguntas, e não admite que seus subordinados se dirijam
a ele como se suas afirmações se parecessem como se fossem perguntas. Não, não há
contingência nessa sua normatividade. Suas convicções aparecem para ele como
indícios que asseguram a realidade de si e do mundo.
Entretanto, essa ilusão logo
vai se smilinguido e Locke, por fim, recebe um telefone da esposa pedindo que
não retorne mais ao lar. Já não tem mais lar. Silêncio completo. As únicas
palavras que ficam são as da sua esposa, que
ecoam na sua cabeça, e a voz do seu filho que havia ligado para contar
emocionado sobre o jogo do seu time. As lágrimas lhe escorrem pelo rosto. Locke
está atônito, em completo silêncio, enquanto guia o carro pela via movimentada.
As luzes da cidade e os faróis não podem lançar uma única nesga de luz em sua
terrível impotência e solidão. Locke, que não nutre sentimentos, parece
conduzir-se a si mesmo ao inferno. Sua dureza consigo próprio, seu
sentimento de culpa e de fraqueza faz pensar que precisa ser redimido. E leva
isso às ultimas consequências. A nenhum homem é exigido isso. Entretanto, erige
para si um calvário, quando as flores e as águas cristalinas dessa fonte pedem
apenas olhos para ver e sentir a água na garganta da sede de amor que rega e
faz florir na alma. Tudo estava tão próximo, tudo estava ao lado. Locke não vê.
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