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sábado, 23 de agosto de 2014

Fragmentação e o itinerário do ser


Corno qualificativo para a vida, a palavra "moderna" pode ser tida como uma armadilha semântica. Na realidade "viver moderno" e "vida moderna" são termos comumente ouvidos ou vistos em textos onde parece implicar que há alguma coisa de especial sobre a vida nesses tempos modernos, paralelamente a outros tempos. No entanto, "vida moderna” é o único tipo de vida que já existiu neste mundo de realidades. Todas as vidas, vividas anteriormente ou sendo vividas agora, foram, ou são, vida moderna. As condições circunstantes foram obviamente muito modernas relativamente a qualquer período de vida. Se nos reportarmos ao estudo da filosofia clássica, e se dele aprendemos a refletir sobre as questões mais importantes, isso se deve traduzir em que os problemas básicos humanos sempre foram, são e serão os mesmos.

As condições externas, físicas, de superfície, não permanecem as mesmas. Em particular os aspectos especiais da vida, mudaram. Antigamente, os problemas de qualquer determinada vida estavam relacionados a uma área ou espaço restritos. Logo que as circunstâncias físicas da sociedade mudaram, como meios de transporte, tecnologia e comunicações que progrediram e se expandiram, esse aspecto especial também se expandiu além da comunidade, do Estado, do país, até ter alcançado o que hoje denominamos mundo globalizado — e, talvez, esteja, agora, na iminência de alcançar uma nova dimensão e maior amplitude. Mas os problemas básicos para os quais a filosofia tem tentado encontrar respostas, são, agora, os mesmos que enfrentados e solucionados (até certo ponto) por Platão, Heráclito, Espinosa, Schopenhauer  e muitos outros.

Se o indivíduo moderno tornou-se um sujeito fractal, ao mesmo tempo subdivisível, fechado em si mesmo e consagrado a uma identidade fragmentada, se isso nos parece terrificante, dado o abandono do itinerário daquela filosofia que trazia como característica ontológica a valorização do ser, da interioridade essencial, certamente não preparamos os canais, para os nossos pensamentos e ações, que constituem a verdade básica quanto ao que é atual, real, bom - e verdadeiro. O que necessitamos, então, é retroceder, voltar a pensar o conhecimento que nos aproxime mais de uma sabedoria, pois, como diz o antigo livro dos provérbios: “a sabedoria é a coisa principal; adquire, pois, a sabedoria”.  


domingo, 17 de agosto de 2014

Blade Runner - o presente lancinante de horizontes



Faz tempo que assisti Blade Ranner. Mas o frescor das últimas palavras de Roy, ferido mortalmente por quem nunca viu ou sentiu “lágrimas na chuva”, nunca podem ser esquecidas:

Eu tenho visto coisas que vocês humanos nem imaginam, naves de ataque em chamas na borda de Orian. Faróis brilhando na noite perto do portal de Tenhouser. E todos estes momentos vão se perder no tempo. Como? Lagrimas na chuva. Hora de morrer”.

O que atinge e perturba em Blade Runner é que ele nos lança na sensibilidade conducente de uma plenitude, de um olhar que está fora do itinerário do homem desatento da realidade lancinante do horizonte ontológico. Ser, viver e defrontar-se com o seu reverso, a morte. Sofrer uma metamorfose, tomar outra forma e fundir-se ao ritmo vertiginoso das grandes ascensões cósmicas. Mas viver é não deixar “se perder no tempo”; é ver e sentir o seu próprio acontecimento na própria eternidade do ser, é ter “visto coisas” arderem na vigília imanente da eternidade, é estar sobre o retorno de algo esquecido, porque o homem esqueceu do próprio esquecimento e por isso não se lembra da presença de uma ausência fervilhante.

Distante de ser capturado pelo inapercebido da nossa dimensão, o confronto com a imagem concreta da existência sacode o expectador que vive imerso na normopatia e o retira de uma apatia social que há muito sedimentou suas resistências à resignação, contenção, e dispersou-o nas mundividências humanas.

Assim vivendo, o cotidiano despotencializado, imerso no tempo e na rotina, não mobiliza. Adormece. Mas a eternidade, ela que se mostra em cada dobra da existência, que se deixa “ver” no invisível do visível, recolhe o véu transitório e o faz escapar a mordedura do tempo. Só então o espírito exulta de exuberância e luminosidade e recolhe sua herança primeva, e,  “brilhando” como as roxas barreiras da aurora, vê as fantásticas brigadas “de ataque em chamas”, vertendo da própria existência toda intensidade fina e cristalina. Mas “todos os momentos” - para quem não está vendo, para quem anda por essa terra como quem caminha por um deserto -, Lamenta Roy, “vão se perder” e desaparecer bem diante dos olhos, uma constatação dolorosa do extravio humano.

Num misto de gratidão [por ter “visto” e vivido “coisas que os humanos nem imaginam”] e tristeza [por ver que os homens não veem a beleza e profundidade das coisas], Roy dá o seu último suspiro em lagrimas sob a chuva que cai. Seu olhar profundo abandona seu brilho. Ao afrouxar as mãos, uma pomba branca voa e ascende a um céu e multiplica as visões da eternidade.

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