Páginas

domingo, 17 de agosto de 2014

Blade Runner - o presente lancinante de horizontes



Faz tempo que assisti Blade Ranner. Mas o frescor das últimas palavras de Roy, ferido mortalmente por quem nunca viu ou sentiu “lágrimas na chuva”, nunca podem ser esquecidas:

Eu tenho visto coisas que vocês humanos nem imaginam, naves de ataque em chamas na borda de Orian. Faróis brilhando na noite perto do portal de Tenhouser. E todos estes momentos vão se perder no tempo. Como? Lagrimas na chuva. Hora de morrer”.

O que atinge e perturba em Blade Runner é que ele nos lança na sensibilidade conducente de uma plenitude, de um olhar que está fora do itinerário do homem desatento da realidade lancinante do horizonte ontológico. Ser, viver e defrontar-se com o seu reverso, a morte. Sofrer uma metamorfose, tomar outra forma e fundir-se ao ritmo vertiginoso das grandes ascensões cósmicas. Mas viver é não deixar “se perder no tempo”; é ver e sentir o seu próprio acontecimento na própria eternidade do ser, é ter “visto coisas” arderem na vigília imanente da eternidade, é estar sobre o retorno de algo esquecido, porque o homem esqueceu do próprio esquecimento e por isso não se lembra da presença de uma ausência fervilhante.

Distante de ser capturado pelo inapercebido da nossa dimensão, o confronto com a imagem concreta da existência sacode o expectador que vive imerso na normopatia e o retira de uma apatia social que há muito sedimentou suas resistências à resignação, contenção, e dispersou-o nas mundividências humanas.

Assim vivendo, o cotidiano despotencializado, imerso no tempo e na rotina, não mobiliza. Adormece. Mas a eternidade, ela que se mostra em cada dobra da existência, que se deixa “ver” no invisível do visível, recolhe o véu transitório e o faz escapar a mordedura do tempo. Só então o espírito exulta de exuberância e luminosidade e recolhe sua herança primeva, e,  “brilhando” como as roxas barreiras da aurora, vê as fantásticas brigadas “de ataque em chamas”, vertendo da própria existência toda intensidade fina e cristalina. Mas “todos os momentos” - para quem não está vendo, para quem anda por essa terra como quem caminha por um deserto -, Lamenta Roy, “vão se perder” e desaparecer bem diante dos olhos, uma constatação dolorosa do extravio humano.

Num misto de gratidão [por ter “visto” e vivido “coisas que os humanos nem imaginam”] e tristeza [por ver que os homens não veem a beleza e profundidade das coisas], Roy dá o seu último suspiro em lagrimas sob a chuva que cai. Seu olhar profundo abandona seu brilho. Ao afrouxar as mãos, uma pomba branca voa e ascende a um céu e multiplica as visões da eternidade.

Um comentário:

  1. Que texto filosófico e maravilhoso. Lembra a essência de um pequeno e grande sonho que tive na noite anterior (ontem); sobre o meu antepassado, onde em vigíla, pude contemplar, "a beleza e profundidade das coisas". É que no sonho, eu via a beleza da vida, que resplandecia de um passado distante e longíncuo, de harmônia entre o homem originário e a natureza. Mas tem muito muito mais a decifrar nesse sonho simbólico, como nesse texto belíssimo.

    ResponderExcluir

Contato

Nome

E-mail *

Mensagem *