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sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Jim Morrison - a arte como expressão do trágico

                
                   Jim Morrison extraiu uma matéria-prima de suas angústias e das suas inquietações e a partir delas elaborou um objeto cultural e inteligente, sensível e poético. Essas idéias tiveram a capacidade de vibrar no mesmo nível das preocupações do homem contemporâneo, a ponto de percorrer varias gerações e persistir nos dias atuais, superando todos os modismos, sucessos repentinos e consumistas deste novo milênio.

Dono de uma intimidade com as palavras, nelas expressou implacáveis componentes dinâmicos cujo sentido final é relativo a nós mesmos, nunca à vontade com o nosso próprio reflexo no espelho. Mas o poeta, assim como o artista, afirma Didier, não está sempre sozinho. Em cada um, ele coloca a consciência da verdade, ele exprime, através da sua criatividade, uma linguagem universal, e, por possuí-la, carrega em si os significados dos outros. Ele é o ‘Sacerdote do invisível” sempre a escandir mensagens férvidas em horizontes grandiosos, cuja sede é fornecer a matéria-prima explosiva que posa fecundar a vida.

Jim Morrison, homem apaixonado pelo absoluto, pela vida e pela liberdade, encontrou na arte o simbolismo abundante com o qual pôde expressar sua mordente inquietude. Via na arte o poder de romper com o imediatamente dado, estabelecendo esferas de negação, transgressão e liberdade. Por isso sua peculiaridade, cria - no mundo da simples reprodução – outras possibilidades para o real.

Jim Morrison concorda com Marcuse:

“A arte desafia o monopólio da realidade estabelecida em determinar o que é real e fá-lo criando um mundo fictício que, no entanto, é mais real do que a realidade”.

Assim, a verdade que brota da criação do artista é algo solitário, e a sociedade e o mundo “administrados” não podem suportar durante muito tempo aquilo que é dito pela poesia, pois a lógica do mundo, afirma Didier, e a do artista criador são opostas. Da mesma forma, para que algo sobreviva visando à segurança da realidade, deve-se domesticar o impulso poético, através do truncamento da beleza do verbo e seu poder de revolução da verdade.

É nessa fronteira tênue entre a ligação do mundo e a do poeta que Jim pretende escancarar o que zelosamente trazemos como protegido. Antes, caberia perguntar: por que os direitos poéticos não figuram na lista dos direitos humanos?

Essencialmente, porque esses direitos são perigosos; e fazem libertar o inconsciente, abrir as comportas, deixar explodir e explorar o desejo. Nada mais perigoso em uma sociedade que o desejo de uma pessoa livre, o desejo cego, o desejo incontrolável [Didier, p.34. 2003].

Ora, a perda do controle, o desejo livre, o desejo cego, deixar explodir todas as manifestações e irrupções do inconsciente é de Jim Morrison que estamos falando.

E Jim leva tudo isso as últimas conseqüências no palco, que é o lugar por excelência para encenar todas as manifestações impulsivas que trazemos na psique. As cenas vão de beleza ao horrendo; do vagamente claro as sombras; da aparente ordem a total desordem.

No palco Jim Morrison canta, recita, dança com excepcional capacidade para mobilizar emoções. Enuncia e decompõe na efervescência das imagens poéticas, faz voar o imaginário, em horizontal, mediante hipérboles, uma espessa ordem de axiomas, conjura, adverte e narra com a urdidura de um teatro insano e sombrio.
  
Como afirma Teixeira Coelho:


A batalha de símbolos que o teatro pode encenar é a batalha dos homens por trás dos símbolos. E é imprescindível mesmo que essa luta se dê através dos símbolos. Essa alteração dos sentidos em repouso,exercitada pelo teatro, a liberação do inconsciente recalcado, conduzem a uma espécie de revolta virtual - e é exatamente por ser virtual que a transformação acionada pelo teatro tem seu valor; é enquanto virtualidade que esse jogo interessa (1983, p. 83).

Jim acredita que é possível purificar essas regiões caóticas por meio da purgação, da regeneração pela união (casamento) dos elementos. Para tanto, era preciso passar primeiro pelas regiões sombrias, pelo negrume, ascendendo (como na Divina Comedia) até atingir o Paraíso.

É como um ritual de purificação, em sentido alquí­mico. Em primeiro lugar, tens que passar pelo pe­ríodo de desordem, de caos, regressando a uma região de primitiva calamidade. A partir daí purifi­cas os elementos, encontras uma nova semente de vida, que transforma toda a vida, toda a matéria e a personalidade até o fim, com confiança, emer­ges e une todos aqueles dualismos e oponentes. Então, não estás mais a falar do bem e do mal, mas de algo unificado e puro (O Navio de Cristal, p.20.2009).

Como não se pode tomar o céu de assalto (C. Wilson), é preciso enfrentar o caos. Como afirma Mircea Eliade: “uma forma, seja qual for, pelo fato de que existe e dura, debilita-se e se gasta. Para que revigore é essencial voltar aos caos, à orgia, às trevas...” O caos é considerado por Artaud como um princípio recriador da vida, pois contém “infinitas perspectivas de conflitos e pode ser tão decisivo quanto perigoso” (1999, p. 52). Para Camus, afirma Sandra (2007, p. 64) o caos é o instante que precede e abarca a possível percepção do absurdo, percepção que induzirá o despertar da consciência. Ao tema sonoro da cena inicial mistura-se a luz do cometa e o diálogo e os gritos das personagens, numa busca de correspondência entre sons, palavras e gestos para que esses, ao emergirem do caos original, plenos de energia, transformassem espectador e teatro. Transformação que é o ideal de Jim Morrison/Artaud, cujo teatro, assim como a alquimia, objetiva a fabricação do ouro a partir de símbolos que colocariam o Cosmos em ebulição e destruiriam, minuciosa e exacerbadamente, toda forma insuficientemente apurada (ARTAUD, 1999, p. 51-53).

Cada apreensão, cada contato da alma com esses símbolos, com esses signos é um mergulho na própria escuridão. Como em “O Nascimento da Tragédia”, a percepção que Nietzsche tem da arte impressionou Jim Morrison profundamente. Levando-o a percepção de que o homem é habitado pelo conflito e na capacidade de representação encontra a possibilidade de traduzir o sofrimento em arte. Como a arte, portanto, só poderia ser verdadeira na medida em que envolvesse a totalidade da vida, inclusive seus aspectos mais repulsivos e sombrios.

Jim Morrison, discípulo de Nietzsche, compreendia essa milícia móvel de metáforas, metonímias e antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas que compõem o campo da estrutura interna do homem a ser confrontada e transformada.



Bibliografia:

COELHO, Teixeira Guerras Culturais. São Paulo: Editora Iluminúrias Ltda, 2000.

_______. Antonin Artaud. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1983, série Encanto
Radical

CAMUS, Albert. O Estrangeiro. Trad. Valerie Rumjaneck. São Paulo: Record: 1997.

MODESTO, Helder. O Navio de Cristal – uma interpretação da vida e das obras musica e literária de Jim Morrison. São Paulo: Editora Baraúna, 2009


LAURU, Didier. Jim Morrisn – L’état Limite Du Héros, 2003. Paris: Bayard Centurion


Artigo que publiquei na revista LABORATÓRIO DE POÉTICAS - ANTENAS & RAÍZES.


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